O direito à comunhão da fé

Na pandemia mais letal da história, a da peste negra no século XIV, as igrejas serviram principalmente para empilhar mortos. Se o costume regular já era fazer os sepultamentos nos tempos católicos, principalmente das pessoas importantes ou de posses, a epidemia que ceifou milhões de vidas terminou por torná-los locais infectos – incompatíveis com um ambiente de orações e confraternização dos fiéis. Terminaram esvaziados, embora o remédio mais procurado e receitado contra a peste fosse a fé, pois, entre as causas absurdas atribuídas à doença predominava a de castigo divino.

Na grande epidemia da Era Contemporânea, a da gripe espanhola de 1918, as igrejas, já acrescidas no Ocidente pelas das religiões protestantes, também eram refúgio dos que buscavam proteção que a Medicina não oferecia. Tão logo se percebeu a forma do rápido e mortífero contágio, os templos, tal como cinemas, escolas e outros pontos de ajuntamento, foram fechados pelo Poder Público – tal como agora em muitas cidades. Não incluídas nos atos que liberavam o funcionamento dos chamados serviços essenciais, as “atividades religiosas de qualquer natureza” foram liberadas por um decreto do presidente da República, logo contestado pelo Ministério Público em ações acatadas pela Justiça.
 
Se é dito na Epístola de Judas (o discípulo, não o apóstolo), “tenham compaixão daqueles que duvidam”, é permitido duvidar da constitucionalidade desses atos que na prática restringem o direito à fé. A Constituição é taxativa no Art. 5.º, inciso VI: “É inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias.” Já o Art. 19 diz que “é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público” (grifos nossos).
 
A ressalva “na forma da lei” jamais foi regulamentada, como, aliás, várias outras da Carta Magna – não havendo, portanto, ato legislativo que legitime qualquer exceção à incolumidade dos dispositivos constitucionais. O embaraço dos templos religiosos só é admitido nos Estados de Defesa e de Sítio. Nos artigos 136 a 141, a Constituição já prevê atos draconianos à liberdade dos cidadãos, que vão da censura à imprensa e violabilidade das comunicações à restrição ao direito de reunião, “ainda que exercida no seio das associações” – e aqui figuram as igrejas. Na ausência desses estados de exceção, o fechamento dos templos é tão inconstitucional quanto a censura à imprensa e a violação do sigilo da correspondência.

A defesa mais comum do fechamento sumário das igrejas argumenta que não se trata de cerceamento à liberdade de culto, mas prevenção das inevitáveis aglomerações que os ofícios religiosos atraem. Dizem, ainda, que preces e outras funções podem ser desempenhadas em casa ou seguidas pela TV aberta e internet. Esse foi o imediato entendimento da Igreja Católica. Ofícios religiosos regulares já estão suspensos em sinagogas, mesquitas e nos chamados terreiros dos cultos afro-brasileiros. Entre os católicos, até a extrema-unção coletiva dada a distância aos enfermos graves já foi autorizada pelo Vaticano.

As reações mais ostensivas partiram de denominações neopentecostais, até porque, em alguns casos, a presença do rebanho é a garantia do dízimo do pastor. Chama atenção, segundo uma pesquisa do Datafolha, que, se no todo da população 37% consideram que o trabalho deve ser liberado, esse índice sobe para 44% entre os evangélicos. Entre os que não temem ser infectados, a proporção é de 12% na população em geral e 29% entre os evangélicos. A esta minoria se aplica o dito de Sofocleto: “A fé consiste em não crer no que está acontecendo.”

Vem a ser indiscutível o temor das autoridades sanitárias de que igreja aberta signifique multidão aglomerada. Contudo, sublinhe-se que, ao contrário da simplificação embutida no exercício da prática religiosa nos lares ou pela TV, os templos simbolizam a pedra fundamental da fé. Neles as pessoas se reúnem como contas de um colar de fraternidade humana e desfrutam o senso de pertencimento à comunidade, comungando coletivamente nos ofícios e liturgias de sua religião.

Ocorre que os serviços essenciais pacificamente liberados também geram aglomerações – e, como têm mostrado os noticiários, de forma a multiplicar o contágio da covid-19. Tal como nas dependências desses serviços, as igrejas poderiam ficar abertas para aqueles cuja fé não abre mão de seu símbolo – desde que não em atos de ajuntamento, como missas, e seguindo as regras de afastamento, proteção pessoal e assepsia recomendadas pelos médicos. Respeitadas essas cautelas, se é permitido ir a aeroportos, rodoviárias, supermercados, farmácias, bancos e usar o apinhado transporte coletivo, por que não se pode ir à igreja rezar?    


Ricardo Toledo Santos Filho, vice-presidente Ordem dos Advogados do Brasil da Seção de São Paulo